domingo, 22 de abril de 2012

A nota mais sutil do mais doce veneno





Deixe estar, que o tempo é senhor de tudo.
                Muda a vida como notas de uma sinfonia.
                Ele entrou no cômodo vazio, lotado de memórias que não valia a pena ter, imerso em cheiros que impregnavam a alma e lá ficavam. Pôs a bolsa sobre a mesa e deixou-se cair na sua poltrona mais macia, bem em frente a sua janela preferida.
                Pousou suavemente o dedo no aparelho de som e deixou que a doce beleza de Wolgang lhe enchesse o coração e tapasse os buracos que ele mesmo fizera em tempos de delicadeza e doação.
                Sentiu uma leve corrente de vento que trazia consigo um fino aroma de lírios, tão conhecido, diretamente à seu anestesiado nariz, ouviu os passos leves ecoarem no corredor, cada vez mais audíveis a seus desconfiados ouvidos. Da leve sombra que se projetava na parede de sua sala de estar, viu-a surgir, bela como sempre, sedutora como sempre, com seus olhos de garota arisca. Viu-a andar com seu belo gingado até ele, cada passo uma harmonia quase incrível de movimento.
                Ela parou na sua frente, de pé, encarando-lhe por alguns minutos. Ele, confuso entre sentir-se extasiado ou aterrorizado, teve coragem apenas de à olhar de volta, admirando os finos traços de seu rosto, as acentuadas curvas de seu corpo bem desenhado.
                Continuou paralisado quando os braços daquela aparição se esticaram e suas mãos encontraram seu peito, que ao leve toque de suas palmas, retraiu-se. Prendeu a respiração quando ela sentou-se com movimentos vagarosos em seu colo. Conseguiu, com um esforço de semideus, levar as mãos a cintura dela.
                Quanto tempo ganharam olhando um para o outro?
                Fossem dez minutos, fossem dez décadas, ainda assim seria pouco.
                Muito pouco para um amor feito para ser eterno.
                Encostou a ponta de seus dedos, tão trêmulos, naquela face que habitara seus sonhos e seus pesadelos, sentindo a sua delicadeza. Contornou com o indicador os lábios vermelhos que lhe tiravam o fôlego, tão quentes e tão doces como o mel. Um mel feito de puro veneno.
                Foram esses mesmos lábios vermelhos que os deles encontraram.
                Dez mil volts espinha abaixo, dez mil litros de adrenalina despejados de uma vez na corrente sanguínea. Nasce como um beijo leve, tímido, que ganha forma, reconhece o terreno onde vivia tempos antes, e torna-se um frenesi de pura vontade.
                Um frenesi de corpos separados pelas incongruências da vida.
                Um frenesi de almas que se perdem pela falta de vontade.
                Um beijo, um despertar, uma chama fugaz de felicidade.
                Seus corpos uniam-se como se fossem apenas um. Braços vorazes buscam espremer um gole que fosse de alma, músculos contraiam-se frente ao desejo que brotava do cerne físico. Eram dois, eram um, eram o início e o fim de algo muito maior. Entre gemidos abafados e unhas cravadas, nascia a inocente beleza do sentimento.
                Juntos, constituíam uma única entidade, uma mistura perfeita do carnal e do sublime.
                A última nota de Wolfgang lhe chama de volta a realidade. Abre os olhos, desamparado, para o vazio imenso que lhe faz companhia. Sem lírios e sem beijos, só lembranças.
                Detestava dormir quando ouvia Mozart.
                Ainda mais quando não era pelos dedos dela que ele cantava.
                É assim, a sutil maestro que é a vida.
                Do allegro ao adágio, em um único compasso.
                Um solitário compasso.

By Rafs